“Now is no time to think of what you do not have. Think of what you can do with that there is.” ― Ernest Hemingway, The Old Man and the Sea.
A tela nunca está em branco. O branco existe como representação de uma expressão de criatividade por concretizar. Identificar qualquer tipo de materialidade como “em branco” é o suficiente para gerar ideias: uma linha, uma aresta, uma cara, um sentimento, uma floresta nórdica à noite, uma antiga casa de família, uma cena de pancadaria no recreio, o cheiro a pão acabado de fazer, a força das ondas na minha direcção…
Ainda nem pegaste no pincel e o branco já desapareceu na espuma do mar. Sujamo-lo com a intenção mais humana: criar. Perpetuar conceitos, ideias, histórias… Perpetuarmo-nos a nós próprios. A tela estará mais em branco quanto mais longe estiver da vista, longe da concretização: boa ou má, quem julgará? No século XXI é mais valorizado o “concretizar” ou o “porquê concretizar”?
O branco fica sujo das nossas intenções muito antes da obra estar concluída: está tudo enleado em propósitos turvos e palavras vagas. A criatividade individual está subjugada à experiência do ser humano que a transporta. Cada um nós, tipo Sims, a passear com o cristal da criatividade em cima da cabeça. Uns de cor verde ou azul, desejosos de explorar a Natureza e viver com/para ela.
Outros, vermelhos ou roxos, cheios de paixão e vontade de a partilhar das mais diferentes formas. Cada qual com o seu cristal, abordam o “branco” num tom pré-definido. Essa é a marca do criador, que pode facilmente assustar ou iludir: mas não quem assiste. Quem cria vive assustado ou iludido com a sua própria marca, a verdade que transborda pelas frases, pinceladas, frames, passos ou notas, que ninguém quer realmente expor. O branco fica sujo com as nossas intenções muito antes da obra estar concluída.
É sempre mais fácil começar com uma intenção, mesmo que inicialmente seja causada por medo ou ilusão. Para sobreviver às ondas é preciso tempo e dedicação. Mas se passarmos por cima da espuma do mar, veremos linhas desenhadas na areia. Arestas que não tínhamos imaginado antes, conchas de formas estranhas, partículas fragmentadas de sei lá o quê, até lixo. Podemos interpretá-las como coordenadas e criar a partir delas… Ou podemos ignorar. O mar vai sempre lá estar. Com o tempo conseguimos distanciar-nos e ver mais longe. Aprendemos a pegar em redes e a esperar para escolher o que apanhamos da maré: bom ou mau, quem julgará? No meio de referências e metáforas confundimos mito e realidade: de propósito ou não.
Dedicamos uma vida a construir micro-mitologias que se evaporam ao clique de um botão. A realidade, embora cada vez mais à mercê de “botões”, continua a ser o único lugar realmente real. Se as ideias não passarem a acções, existem mesmo? Se não pegares no pincel, a tela fica em branco?