A importância da tela em branco

15 Janeiro 2024

“Now is no time to think of what you do not have. Think of what you can do with that there is.” Ernest Hemingway, The Old Man and the Sea. 

branco

A tela nunca está em branco. O branco existe como representação de uma expressão de criatividade por concretizar. Identificar qualquer tipo de materialidade como “em branco” é o suficiente para gerar ideias: uma linha, uma aresta, uma cara, um sentimento, uma floresta nórdica à noite, uma antiga casa de família, uma cena de pancadaria no recreio, o cheiro a pão acabado de fazer, a força das ondas na minha direcção…

Ainda nem pegaste no pincel e o branco já desapareceu na espuma do mar. Sujamo-lo com a intenção mais humana: criar. Perpetuar conceitos, ideias, histórias… Perpetuarmo-nos a nós próprios. A tela estará mais em branco quanto mais longe estiver da vista, longe da concretização: boa ou má, quem julgará? No século XXI é mais valorizado o “concretizar” ou o “porquê concretizar”?

O branco fica sujo das nossas intenções muito antes da obra estar concluída: está tudo enleado em propósitos turvos e palavras vagas. A criatividade individual está subjugada à experiência do ser humano que a transporta. Cada um nós, tipo Sims, a passear com o cristal da criatividade em cima da cabeça. Uns de cor verde ou azul, desejosos de explorar a Natureza e viver com/para ela.

Outros, vermelhos ou roxos, cheios de paixão e vontade de a partilhar das mais diferentes formas. Cada qual com o seu cristal, abordam o “branco” num tom pré-definido. Essa é a marca do criador, que pode facilmente assustar ou iludir: mas não quem assiste. Quem cria vive assustado ou iludido com a sua própria marca, a verdade que transborda pelas frases, pinceladas, frames, passos ou notas, que ninguém quer realmente expor. O branco fica sujo com as nossas intenções muito antes da obra estar concluída.

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É sempre mais fácil começar com uma intenção, mesmo que inicialmente seja causada por medo ou ilusão. Para sobreviver às ondas é preciso tempo e dedicação. Mas se passarmos por cima da espuma do mar, veremos linhas desenhadas na areia. Arestas que não tínhamos imaginado antes, conchas de formas estranhas, partículas fragmentadas de sei lá o quê, até lixo. Podemos interpretá-las como coordenadas e criar a partir delas… Ou podemos ignorar. O mar vai sempre lá estar. Com o tempo conseguimos distanciar-nos e ver mais longe. Aprendemos a pegar em redes e a esperar para escolher o que apanhamos da maré: bom ou mau, quem julgará? No meio de referências e metáforas confundimos mito e realidade: de propósito ou não.

Dedicamos uma vida a construir micro-mitologias que se evaporam ao clique de um botão. A realidade, embora cada vez mais à mercê de “botões”, continua a ser o único lugar realmente real. Se as ideias não passarem a acções, existem mesmo? Se não pegares no pincel, a tela fica em branco?

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