O skate não é um desporto olímpico.
O skate é uma arte.
É uma forma de estar.
Um dialeto, um idioma, uma forma de comunicação verbal e não verbal.
É uma expressão de estilos, texturas, cores, ritmos e movimentos, que constroem indivíduos com identidade própria.
É carácter e personalidade.
E há uma característica dessa tribo que é comum a todos os riders.
Um lugar só nosso, que ninguém precisa de verbalizar.
Um estado de espírito.
Politizá-lo é violar a sua essência.
Para provar o meu ponto de vista, tentei “desmontar” aquela que foi a minha jornada e a minha perceção desta modalidade ao longo dos anos.
Demo na Afonso III
É sabido que a história do skate remonta aos anos 60, onde um grupo de surfistas norte-americanos teve a ideia de compensar a falta de ondas com um pedaço de madeira e 4 rodas.
Há muito material na internet que conta esta história – e outras – relacionadas com a modalidade, mas não é esse o foco do meu rabisco.
Para quem, como eu, teve o privilégio de iniciar este desporto nas décadas antecedentes ao novo milénio, viveu situações de pura magia: o nascimento dos ídolos, a proliferação das marcas, o crescimento da indústria e a evolução da modalidade no seu todo através de inovações constantes.
O meu primeiro contacto foi uma demonstração de skate que fui ver no pavilhão Afonso III com o meu irmão nos anos 80.
Nessa altura, Tony Hawk, Steve Caballero e outros riders contagiavam os espectadores com irreverência e paixão.
A experiência de vê-los ao vivo em cima de um skate a voar, nas rampas patrocinadas pela Bollycao, acendeu uma faísca que eu não sabia existir e que só aqueles que conhecem o desporto compreendem.
A primeira vez que andei de skate foi no Variflex do meu vizinho Quim. Eu era miúdo, tinha cerca de 10 anos e o vício consumiu-me. Semanas ou meses mais tarde, consegui convencer os meus pais a comprar um skate ao Rebocho na “Surf Faro – Surf Shop”.
VHS a preto e branco
O skate e as marcas foram crescendo, à medida que cassetes de vídeo VHS e revistas mensais como a Trasher Magazine ou a Transworld Skateboarding circulavam de mão-em-mão, solidificando essa magnitude interestelar para o continente europeu.
Rodney Mullen, Daweon Song, Kris Markovich, Chad Muska, Stevie Williams, Jamie Thomas, Danny Way, Colin Mackay, Rob Dyrdek, Jeremy Wray, entre outros skaters, forravam as paredes dos nossos quartos como fonte de inspiração.
Inicialmente o skate era muito em halfpipe/vert; mas a minha paixão sempre foi o street. A primeira ocorre num halfpipe (ou rampa) específica onde se podem fazer manobras de coping ou no ar, andando de um lado para o outro e variando de truque para truque. O street é diferente, implica criatividade para escolher uma linha e “dar” as manobras de acordo com uma determinada perspetiva criativa em obstáculos reais de rua: passeios, corrimões, paredes, escadas, etc. Foi esse mundo a que me dediquei.
De vez em quando alguém trazia uma VHS com um vídeo “novo” e lá íamos nós para casa de outro alguém ver, rever e tornar a ver o mesmo filme, vezes sem conta, para ganhar motivação para mais uma sessão de skate.
Sei de cor várias partes de vários filmes de underground, secção a secção, onde spots, skaters e manobras tinham um nível de ranking próprio pelo estilo, velocidade e dificuldade do momentum. As cassetes VHS riscadas a preto e branco deram agora, com toda a informação disponível na internet, origem a vídeos com cores de qualidade razoável. Deixo-vos algumas das minhas seções:
Kris Markovich (Foundation’s Art Bars)
Plan B – Second Hand Smoke (1995)
Rodney Mullen VS Daewon Song (1997 Full VHS)
Dos anos 80 aos 90 muito mudou na indústria.
Skateboarding is (not) a crime
Andar de skate era totalmente proibido.
Fugíamos da polícia – literalmente.
Por vezes éramos “apanhados” e “ralhados”, sem grandes consequências.
Fazia parte da adrenalina.
Não havia skateparks.
Não havia lugar pensado ou reservado para esta modalidade – só no “estrangeiro”.
Andávamos de lugar em lugar à procura de uma estabilidade: no terraço do Sr. Custódio (Penha), na antiga praça de Faro, na Coobital, no Bom João, na Igreja do Carmo, na Avenida 5 de Outubro, na Quinta da Bélgica, em São Brás de Alportel e, mais tarde, na Escola da Penha.
Construíamos rampas com as madeiras das obras que apanhávamos nos lugares que conhecíamos. Quando tínhamos sorte, andávamos nos skateparks de Pedrouços (Lisboa) e Sevilha (Espanha).
O programa de televisão Portugal Radical ao sábado de manhã, foi responsável por conhecermos o tour do Radical Skate Club, os skaters tugas e por difundir a modalidade pelo país, sensibilizando políticos e algumas mentalidades.
Os skaters profissionais do meu tempo, com quem tive o privilégio de andar, foram: o Chinês, o Cegonha, o Guelas, o Nuno Afonso, o Diogo Osório, o Ricardo Fonseca e, claro, o Rómulo (essa instituição em ponto pequeno!). Cheguei a aparecer na “caixinha mágica” a um sábado de manhã nesse mesmo programa.
E a nossa missão na altura era dizer ao mundo que o “Skate não é crime”. Apesar de muitos pensarem o contrário, pelo barulho ou pelos vestígios que deixávamos em cada lugar por onde passávamos.
Fomos felizes. Muito.
No meu tempo não havia DC Shoes
Não havia telemóveis.
Não havia internet.
Hoje em dia vendem-se DC Shoes no mercado de Estoi! Estão massificadas. São produzidas industrialmente na China. Naquele tempo eram feitas à mão e vinham diretamente dos EUA.
Nas revistas víamos fotografias e tentávamos imitar os truques que não conhecíamos; nas revistas víamos as marcas, as roupas, as sapatilhas que encomendávamos por carta registada com formas de pagamento bancárias intercontinentais.
As sapatilhas levavam meses a chegar e quando chegavam eram parte de um ritual inesquecível.
Lembro-me das minhas DC Shoes modelo Colin Mckay pretas e brancas chegarem em caixa fechada às minhas mãos numa sexta-feira e só as abrir no domingo ao pé de outros “manos” antes de uma sessão de skate em Sevilha, que ficou para a história (a minha história).
Muito antes do filme, nós já éramos KIDS
Os meus “manos” eram: Diogo, Chico, Andrew, Rodas, Bubuia e o Valter. Foi o Andrew quem me deu a alcunha de “Pupu”. Reza a história, no mesmo dia em que “dei” as escadas da Igreja do Carmo, pisei um monte de cócó de cão… You’ve got poo poo on your shoe… “Pupu” ficou nesse dia para sempre.
Os nossos dias incluíam: a Coobital, o Papa Burger para comer um Jumbo, a Avenida, a Tomás Cabreira, o corredor da geladaria Baskin-Robbins, assaltos às vending machinese muitos “moranguinhos” no Nicola. Eram dias de rebeldia e muita magia.
Cada truque, cada superação, cada vitória ajudaram a construir o nosso carácter, a nossa personalidade, a nossa forma de estar na vida pessoal e profissional. Sou tão grato a este desporto.
À medida que nos superávamos, o mundo ia evoluindo e fazendo acontecer coisas.
Mas andar de skate implica partir tábuas e gastar sapatilhas; e a performance está normalmente associada a essas duas peças-chave.
Foi o Paulo Raimundo Jesus quem me ajudou durante muito tempo, ao apoiar-nos através da Razo Skate Shop.
Sempre nos apoiou, conduziu e ajudou! És Grande!
O skate é uma magia, que acontece e que fica nas vidas de quem o sente.
É o lugar perfeito dos “desadequados”.
É Arte transversal! É vida! É memória. É amizade.
Não é um desporto Olímpico.
Dos 00 aos 20
Com o novo milénio tudo mudou.
Nas décadas de 2000 e 2010 o skate ganhou proporções inimagináveis.
As marcas profissionalizaram os atletas ao nível milionário-industrial e o que antes era uma “forma de estar” alternativa, passou a atrair cada vez mais participantes. Uniformizou-se. Globalizou-se.
E foi aí que percebemos que o skate era muito mais do que um hobby, do que um desporto, do que um “passatempo”. Era uma arte. Na sua globalidade.
As horas, dias e anos que passámos “vidrados” naquele pedaço de magia foi percebido nesta altura, para a velha guarda, como aquilo que o skate sempre foi: uma forma de expressão artística; um processo de autocontrolo e aprendizagem pessoal; uma superação alicerçada em valores que nos fazem crescer.
E esta magnitude é de tal forma grande, que tudo na vida se manifesta e emerge.
No pain, no gain.
Se, para mim, um kickflip 360 do Kris Markovich me fazia sonhar de olhos fechados durante uma noite inteira, pensando em todo o movimento, do princípio do pop, ao kick, às rugas das calças, ao estilo do cabelo, ao “apanhar” da tábua no ar, à aterragem suave, ao estilo livre, leve e definido de um skater como ele, hoje em dia, não há muito a dizer sobre a nova forma de andar de skate de um Nyja ou de um Gustavo Ribeiro.
Não há palavras para a evolução técnica que se atingiu.
Há miúdos de 5 anos a fazer 900 de seguida em half; há miúdas de 5 anos a fazerem runs totalmente profissionais; incrível, meritório e maravilhoso.
O skate elevou o nível para um estado indescritível.
Moda e Política
Mas o skate hoje em dia também é moda!
Vejo putos de skate debaixo do braço em piso limpo. Parecem levar pochetes para a carteira e para o telemóvel. Estilo sem ação. E isso não é skate.
Tal como os jogos olímpicos não o são. Há provas muito mais tenebrosas, avassaladoras e difíceis de ganhar do que esse momento mundial politicamente incorreto: Dew Tour, X Games, Street League, World Skate Series, Tampa, Berricks, Copenhaga… Essas são as verdadeiras provas de mérito do setor.
O skate tornou-se num assunto político. E só por isso foi para os jogos olímpicos.
Não quero com isto dizer que todas as modalidades que nele estão representadas têm o mesmo tipo de conotação. Estou apenas a falar do skate.
Ainda há dias um político escrevia sobre a performance e sobre a falta de força psicológica de um atleta como o Gustavo Ribeiro nos jogos olímpicos… Como se a prestação do Gustavo não tivesse por trás a teoria mais que comprovada das 10.000 horas do Malcolm Gladwell.
Não sei qual a maior prova de mérito: se a prova dos jogos olímpicos (pela pressão mundial que a todas as classes sociais impõem) ou se a etapa do circuito mundial que o Gustavo ganhou com a nossa bandeira aos ombros (e nesse momento não me recordo de nenhum post desse mesmo político).
O meu estado de espírito
Desde os primórdios até aos nossos dias, há quem procure essa(s) história(s) de forma evidente. Uma busca pelo passado melancólico e saudosista que se nos deparou sem qualquer hipótese de perceção.
Para os verdadeiros amantes desta arte, o podcast Nine Club demonstra atualmente quão importante/relevante/presente é esta busca.
De vez em quando entretenho-me a ouvir, nas vozes dos meus ídolos de juventude essas estórias que nos marcaram. Eles contam, melhor do que ninguém, como foi a evolução do desporto/modalidade/arte. Seja no Nine Club, numa busca na web ou nas redes, o skate está presente.
Não ando de skate (por agora), mas sinto-me um skater da cabeça aos pés.
As minhas tatuagens, as minhas cicatrizes, as mazelas que o meu corpo denuncia são provas dadas de que o skate é parte de mim.
E a B16 vive dessa influência.
Dessa arte alternativa e urbana que nos fez e faz crescer.
A Ted Talk do Rodney Mullen demonstra-o bem.
Mas há muito mais por aí…
Tenho metido na gaveta a vontade de comprar um skate à minha medida.
O meu filho está a crescer e eu quero muito que ele ande também, apesar das dificuldades que este desporto acarreta para os pais daqueles que nele patinam.
Quero metê-lo às minhas cavalitas e deslizar em cimento polido… naquele silêncio que os rolamentos cantam.
O skate não é um desporto olímpico
Muitos consideram que o facto de se ter tornado um desporto olímpico fez com que o skate chegasse à mais elevada categoria do seu esplendor. É um erro crasso.
O skate é muito mais do que um “simples” desporto olímpico que tem por objetivo avaliar qual o melhor atleta dos 5 continentes. Não é apenas a performance em run, é a atitude, é o estilo, é a personalidade e o carácter de cada rider. Não há júris para avaliar um atleta sem esse tipo de limitação das regras uniformizadas e sistematizadas. O skate não é do sistema. É tudo menos isso. É disrupção, revolução, alternativa ao modo sistematizado de se fazerem coisas. Não é velocidade, não é repetição, não é perfeição.
Elevaram-no a desporto olímpico – mas, na minha opinião, não o é! Partilho da opinião do Tristan, que o diz melhor que ninguém.
O skate é uma arte; e a verdadeira arte não se pontua. Quanto valerá um Bansky? E quanto valerá um Robbo? Porque é que um vale mais do que outro? Qual o melhor? Qual o mais detalhado? Quem tem a atitude mais certa?
As modalidades dos Jogos Olímpicos não têm a mesma qualidade em prova do que cada desporto detém por si só na sua isolada existência.
Poderia Rodney Mullen, o padrinho da modalidade, ter vencido os jogos olímpicos? Em que categoria? O skate é inovação constante. Ainda hoje se desenvolvem manobras e novas formas de estar em cima da tábua e das rodas.
Atletismo, Ciclismo, Futebol, Voleibol, Natação, Triatlo, Surf, Breakdance, etc. etc., cada uma delas tem a sua própria indústria, importância e ranking do próprio sector.
Os desportos mais antigos têm a sua história nesta prova, num momento em que o mundo era diferente. Tal como aconteceu comigo, também não havia telemóveis, nem internet, nem DC Shoes.
O skate não é um desporto olímpico.